Cidades flutuantes: o futuro da vida humana é na água

Ironicamente, o planeta Terra é conhecido como “Planeta Azul”, devido a maior parte – cerca de dois terços – da superfície serem cobertos por água, proveniente de rios, mares e oceanos. No entanto, uma série de intervenções humanas estão levando ao aumento das precipitações e do nível dos mares, que pode subir um metro até 2100, forçando a retirada de milhões de moradores de áreas costeiras e ilhas, em todo o mundo, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2019). Desta forma, obras de ficção como o livro ‘A Ilha de Hélice’ (Jules Verne, 1895) e o desenho animado ‘The Jetsons’ (Hanna-Barbera, 1962), se tornam cada vez mais reais, e as Cidades flutuantes se confirmam como parte do plano de salvação do futuro da humanidade.

Do passado ao presente
De modo geral, as cidades flutuantes são estruturas interligadas, construídas para flutuar na água. O conceito já é bem antigo, tanto que, na Baía de Halong, no Vietnã, existem vilarejos flutuantes há várias gerações, abrigando mais de 1.600 pessoas.

Baía de Halong, Vietnã. Foto: Pixabay/Divulgação

Até mesmo no Brasil, na década de 1920, já existiam aglomerados de casas de madeira, cobertas com palha de buçu e assentadas sobre toras de árvores, dispensadas por madeireiros, que serviam como boias, mantendo as habitações a 50 cm da água.

Cidade Flutuante em Manaus, nos anos de 1920. Foto: Cortesia do Instituto Durango Duarte

Em 1960, um projeto mais futurista, porém ainda utópico para a época, foi criado pelo arquiteto Kenzo Tange. O ‘Tokyo Bay Plan’ contava com um vasto sistema de vias, conectadas às laterais da baía de Tokyo, a mais de 40 m de profundidade, sendo uma cidade no ar e na água ao mesmo tempo.

Com o passar dos anos, o avanço das tecnologias e as ameaças de elevação dos níveis dos mares, deram lugar a muitos outros projetos com mais conforto e facilidades da vida moderna. É o caso do bairro Watterbuurt, na Holanda, que começou a ser habitado em 2020. O bairro, localizado no distrito de IJBurg, em Amsterdã, é composto por 158 casas, que flutuam sobre o Lago Eimer.

Posição das casas em relação ao Lago Eimer.
Foto: cortesia do escritório Marlies Rohmer Architecture & Urbanism

As casas são construídas sobre plataformas de concreto, com estruturas leves para flutuarem melhor. “A arquitetura proporciona um nível de conforto doméstico igual ao de outros novos residenciais da região. Por exemplo, os compradores podem escolher qual lado da casa terá vista ou privacidade, respectivamente”, diz Marlies Rohmer, arquiteta responsável pelo projeto Waterbuurt.

Projeto de interiores de uma das casas de Watterbuurt.
Foto: cortesia do escritório Marlies Rohmer Architecture & Urbanism

Todas as casas possuem faces, frontais e posterior, predominantemente brancas, com amplas aberturas envidraçadas e molduras plásticas com acabamento em aço.

São 158 casas à beira-mar, sendo 55 delas flutuantes individuais.
Foto: cortesia do escritório Marlies Rohmer Architecture & Urbanism.

O terraço pode ser posicionado na frente, atrás ou no meio. Marlies diz que as plantas baixas, incluindo a posição das janelas, foram adaptadas às preferências individuais. “Várias opções de extensão, como um terraço flutuante, uma varanda ou um calçadão privado, estavam disponíveis”, diz a arquiteta.

 O futuro na água

O agravamento dos desastres causados pelas mudanças climáticas tem sido tema de muitas conferências e motivo de preocupação. Com isso, arquitetos e designers pelo mundo estão debruçados em seus próprios projetos de cidades flutuantes, como o Cidade de Mériens, de Jacques Rougerie; Lillypad e Aequorea (tendo a Costa do Rio de Janeiro como cenário), de Vincent Callebaut; Atlantis da China; Arca de Noé (Ark’s Noah) de designers sérvios e muitos outros. Os projetos consideram as mais diferentes estruturas, com o mesmo objetivo de construir um modelo de habitação seguro, capaz de conter a elevação do nível do mar e os ventos fortes, além de utilizar técnicas avançadas de sustentabilidade para redução dos gases de efeito estufa e, assim, garantir recursos essenciais para a vida.

Projeto Cidades Flutuantes nos Emirados Árabes unidos, de Luca Curci Architectes +
Tim Fu Design. Imagem: cortesia do escritório Luca Curci Architectes + Tim Fu Design

Entre os projetos mais avançados está o Floating City, do escritório italiano Luca Curci Architects, em colaboração com o canadense Tim Fu Design, que será apresentado na 18º Bienal de Arquitetura de Veneza, entre os dias 20 de maio e 26 de novembro de 2023, na Itália.

O Floating City foi planejado para ser desenvolvido no litoral dos Emirados Árabes Unidos, a fim de aproveitar as condições climáticas do local. Uma vez que se compromete com a redução de gases de efeito estufa, as construções devem ser alimentadas apenas com energia de fontes renováveis, seja hídrica, eólica ou solar. O projeto também prevê soluções de armazenamento de energia, dessalinização da água e integração da agricultura com a produção de alimentos, seguindo uma política de desperdício zero.

Imagem: cortesia do escritório Luca Curci Architects + Tim Fu Design

A princípio, o projeto pretende abrigar 50 mil pessoas. Contudo, pode ser ampliado para 200 mil, em uma área de 10 hectares, que incluirá hospitais, supermercados, escolas, atrações turísticas e espaços de lazer. Os arquitetos pretendem combinar sustentabilidade e densidade demográfica, mudando consideravelmente a vida de seus moradores, que devem utilizar apenas bioenergia e meios de transportes 100% verdes, além de resgatarem o conceito tradicional de comunidade e sociedade, com maior conexão com os elementos naturais.

Imagem: cortesia do escritório Luca Curci Architects + Tim Fu Design

A distribuição e o formato das construções também são aspectos inovadores do projeto. De acordo com os arquitetos, parte dele será construído em terra firme e a outra parte no mar, sendo interligadas por pontes ou acessadas via embarcações e helicópteros. As estruturas terrestres, possuem formas inspiradas na natureza e são chamadas de edifícios orgânicos. Eles devem abrigar hotéis, algumas residências e outros espaços comerciais. Já as estruturas que ficarão no mar são chamadas de “luas”, onde serão construídas casas, mais hotéis e centros de lazer, com acesso via água ou ar.

Imagem: cortesia do escritório Luca Curci Architects + Tim Fu Design

Além da adaptação a um novo espaço, o projeto também vai promover mudanças significativas no estilo de vida humano, uma vez que os edifícios, bem como as residências, terão paredes de vidro fotovoltaico para geração independente de energia e jardins verticais para produção de alimentos. A agricultura será integrada ao espaço social e permitirá que as comunidades forneçam sua própria alimentação. “Cada ilha flutuante incluirá uma estrutura comunitária para viver, incluindo mercados, centros espirituais e culturais”, diz o arquiteto Luca Curci.

Imagem: cortesia do escritório Luca Curci Architects + Tim Fu Design

Em fase de licenciamento, o Oceanix Busan é um projeto do Grupo Bjarke Ingles, em parceria com a UN-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) e o escritório de tecnologia azul OCEANIX. Assim como o Floating City, o projeto não pretende apenas construir casas flutuantes, mas toda a infraestrutura de uma cidade, para livrar os habitantes das regiões costeiras, do aumento do nível do mar e do crescimento populacional desordenado, além de inserir tecnologias avançadas de sustentabilidade para autossuficiência da comunidade.

A cidade escolhida para o projeto foi Busan, a segunda maior cidade da Coréia do Sul, com 3,4 milhões de habitantes, e uma das mais importantes cidades marítimas do país. Cada plataforma modular é composta por 6 vilas, capazes de abrigar 1.650 pessoas, organizadas em bairros que comportam cerca de 300 moradores. Cada seis módulos interligados formam uma cidade circular flutuante, onde é possível abrigar até 10 mil pessoas. E quando esses conjuntos modulares se unem a outros tantos, formam verdadeiros arquipélagos flutuantes.

Imagens: cortesias dos escritórios BIG e Oceanix

Metrópole marítima modular
As plataformas serão ancoradas ao fundo do mar por uma biorocha, que abrigará recifes flutuantes, com cultivo de algas, ostras, mexilhões, vieiras e moluscos, que limpam a água e aceleram a regeneração do ecossistema. Cada plataforma será interligada a outra por meio de pontes e terão uma utilização específica, com áreas residenciais, comerciais e de lazer e outra dedicada à investigação marinha.

Imagens: cortesias dos escritórios BIG e Oceanix

Os edifícios não terão mais do que cinco andares, para manter um eixo de gravidade baixo e, assim, resistir aos ventos fortes. Eles serão construídos com materiais leves, duráveis e ecológicos, como bambu, e terão um sistema de conversão de resíduos em energia, além
de  telhados equipados com painéis fotovoltaicos para geração de energia solar, tornando a ilha autossuficiente energeticamente.

O projeto em si já é desenvolvido para menor consumo energético, pois os edifícios se expandem para espaços internos e áreas públicas com sombra própria, proporcionando conforto e menores custos de resfriamento, ao mesmo tempo em que maximiza a área do telhado para captação solar.

Imagens: cortesias dos escritórios BIG e Oceanix

Além de surgir como parte da solução para os efeitos climáticos, o Oceanix Busan ainda propõe uma grande mudança no estilo de vida humano, com fazendas flutuantes para as comunidades das cidades flutuantes produzirem seus próprios alimentos, aquicultura, um moderno sistema de reciclagem e coleta de água, onde cada “bairro” ficaria responsável pela dessalinização da água do mar para o abastecimento da comunidade.

Imagens: cortesias dos escritórios BIG e Oceanix

É evidente que muitos obstáculos, sejam financeiros, políticos e até mesmo físicos, ainda precisam ser vencidos para colocar todos a bordo em projetos tão arrojados como estes. No entanto, sabemos que um futuro está sendo desenhado à várias mãos. E, se não sabemos quando isso acontecerá, sabemos, ao menos, que esse futuro será azul da cor do mar.

 

 

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